Um orçamento secreto em plena democracia? Como assim?

O plenário do STF retoma nesta quarta-feira o julgamento da ADPF 850 que pede a declaração de inconstitucionalidade das chamadas emendas “RP 9”, as chamadas “Emendas do Relator”, que criaram no Brasil a curiosa figura do “orçamento secreto”. Por que secreto? Secreto porque criadas e geridas, sem qualquer transparência; somente o Relator Geral do Orçamento e o Presidente das duas casas, Câmara e Senado, têm condições de saber quem são os beneficiários das referidas emendas e a que propósito realmente servem. As programações orçamentarias carimbadas como RP-9 no orçamento da união contem ações verdadeiramente genéricas, um verdadeiro cheque em branco para gastar nas bases eleitorais, como apoio “a projetos de desenvolvimento sustentável local” ou “à política nacional de desenvolvimento urbano voltada à implantação e qualificação viária”.

Enquanto o Congresso busca se apropriar dos recursos públicos para satisfazer aos propósitos de reeleição de parcela dos parlamentares, várias políticas públicas estão literalmente regredindo por falta desses mesmos recursos. É o caso do Plano Nacional de Educação aprovado em 2014 com 20 metas para tirar a educação fundamental do atraso em que se encontra: 86% das metas simplesmente não estão sendo cumpridas;inclusive, a da educação da primeira infância e do ensino em tempo integral; a meta 6 do plano estipula 50% das escolas públicas funcionando em tempo integral até 2024. No final de 2022 temos só 20% das escolas nesse regime, quando em 2014 tínhamos 29% em tempo integral.

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Votar o orçamento e fiscalizar a sua execução está entre as grandes funções clássicas do parlamento nas democracias modernas; nunca fez parte, historicamente, dessa função a ampla liberdade para emendar o orçamento brasileiro, como vem, paulatinamente, fazendo o parlamento brasileiro desde 2015. A Emenda Constitucional 86 de 2015 criou as chamadas emendas individuais e de bancada impositivas; estas com limite de 1% da receita corrente liquida e aquela com limite de 1,2% da mesma receita. Entretanto, todas essas emendas de interesse parlamentar para além do limite percentual sobre a receita, deveriam obedecer também o disposto no parágrafo 3º do artigo 166 da CF: estrita obediência ao Plano Plurianual e também à Lei anual de Diretrizes Orçamentárias do respectivo exercício.

É bom registar, entretanto, que essas emendas impositivas ao orçamento, por si só, já deixam o Brasil numa posição incomoda entre os países da OCDE. Segundo estudos da própria organização, não há similar no mundo democrático de um parlamento que intervém de forma tão intensa no orçamento. Enquanto a média dos países da OCDE está na casa de uma intervenção de no máximo 2% da despesa global (o que acontece no caso dos Estados Unidos, mas a maioria dos países as emendas não somam mais que 0,1% da despesa); no Brasil esse percentual, incluindo toda espécie de emenda parlamentar, inclusive, a de Relator, chega a incríveis 24% dos gastos discricionários.

Toda essa situação é arbitrariamente agravada pelas chamadas emendas de relator, que deveriam se limitar a meros ajustes de texto e técnico; entretanto, passaram a poder fazer programações orçamentarias novas. No orçamento de 2021, por exemplo, anulou de forma totalmente arbitrária R$26 bilhões de despesas obrigatórias. Isso mesmo! Como pode o Relator (que exerce uma função legislativa) fazendo as vezes de chefe do poder Executivo cortar R$26 bilhões de despesas, incluindo R$14 bilhões de pagamento de benefícios previdenciários e ainda R$, 2,5 bilhões do crédito agrícola para, em seu lugar, satisfazer suas emendas.

Mas a falta de transparência não é o maior problema das chamadas emendas de Relator. O grande problema reside na absoluta falta de qualquer previsão Constitucional para essa criação genuína do parlamento brasileiro.

Aqui se trata na verdade, como já reconheceu o STF no julgamento da ADPF 347 em um verdadeiro estado de coisas inconstitucionais. Não há como salvar o orçamento secreto! Não se pode a pretexto de maior transparência, como recomendou o STF no julgamento da ação cautelar sobre orçamento secreto, salvar as emendas de relator; porque (i) não são emendas nem individuais nem de bancadas como previstas na Constituição; e (ii) não há para a emenda de relator qualquer previsão no texto da constituição. Como poderia um nada constitucional, que são as emendas do relator, serem limitadas com mais transparência, com indicação do autor da emenda, dos beneficiários ou até de um limite percentual? O parlamento e maiorias não podem tudo porque têm voto. A Constituição é o limite instransponível das ditas maiorias parlamentares e de seus propósitos. Qualquer solução para o orçamento secreto é, por si inconstitucional; antes de violar o artigo 37 da CF, viola sobretudo o princípio constitucional da separação dos poderes; é uma usurpação, sem precedentes, dos poderes do executivo que constitucionalmente deve dar cumprimento as políticas públicas aprovadas pelo parlamento.

*Paulo Roque Khouri, advogado do partido Novo, professor universitário, doutor em Direito pelo IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa

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